Nelson Magalhães Filho. ANJOS BALDIOS, 2009. Mista s/tela, 200X150 cm
CACHORRO RABUGENTO MORTO EM NOITE CHUVOSA Kátia Borges Tom Waits canta Downtown Train enquanto leio Nelson Magalhães Filho. A arquitetura de seus versos é a dos sonhos. Cada leitor lhes empresta sua lógica. Não há segurança, mesmo quando se parece pisar território firme. De repente, numa frase, prédios semânticos inteiros desabam, "neste tempo perdido no mar negro", e mitos podem sustentar com apenas um dedo gigantescas estruturas. "Arrastados passos nesta rua oscilam/como uma flor que reluzente chove: a cidade incendiada". Neste cenário diverso, Salvador parece ainda mais antiga, velho fantasma, com suas ruas largas, concreto sobre a epiderme de província, horizonte que se abre para todo e nenhum lugar. Estamos, isto sim, ainda enclausurados, embora libertos. "Esta é a cidade-sombras/ tão nauseante quanto os ventos escuros". Sim, a cidade-sombras, que se ergue feito onda, gigantesca em sua força. A capital, corpo em cujas artérias circula a matéria viva do poema que vai "pelos becos escuros da Gamboa/vadiando pelas ruas estreitas/esculpidas de perturbados da Gamboa". Há algo de pop, de mítico, de rito neste "Cachorro Rabugento Morto em Noite Chuvosa". Há algo irresistivelmente lírico neste reino, que é Cruz das Almas, Salvador, Dinamarca. Sim, há algo de príncipe neste Blake, como o chama Lima Trindade. Há algo de black nestes versos brancos. Há algo de corajoso neste lirismo, que faz paisagens assomarem, assombrarem, desenharem-se, inusitado e claro e escuro, "dentes postos sobre a mesa como um escapulário". Há um sonho dentro do outro enquanto o bardo oscila entre o compromisso com o sentido e a desmedida. "passeiam cães devotos das hortênsias/navegação à volta de tua nudez desesperada". Não é verso medido, imitação barata de Sosígenes, cromatismo fake, crítica sem autocrítica, lirismo sem caráter ou erudição de almanaque. Nelson é poesia que transborda, esparrama, selvagem, cães,tigres, dentes e garras no cotidiano. Mas confesso que não pensei em Blake quando li pela primeira vez os versos de Nelson Magalhães Filho. Pensei em Roberto Piva (morto em julho do no passado) e no impacto que o seu Piazzas teve sobre mim, com aquele fluxo poético surreal e beat, que parecia retalhar a cidade de São Paulo com sua navalha afiada, palavras. Mas Nelson não é Piva, nem o imita, embora os mova a mesma noção de que vida e vocação são indissociáveis (o poeta paulistano dizia só acreditar em poeta experimental com vida experimental). Nelson tem suas próprias marcas bastante pessoais e originais e com elas traça um imaginário traço, laço, que envolve poesia, artes visuais e existência. Seus versos esnobam a ilusão maniqueísta e dão a cara a tapa. Seus poemas são como quadros, fragamentos de imagens incendiadas. Riffs de guitarra neste universo lírico de pianinho elétrico, programado eletronicamente graças às indicações lidas em algum manual. "Flores putas eclodem a concha do tempo áspero em que os peixes e os insetosm exaurindo larvas, me beijavam até sugar-me o fogo de pedra". Livrinho pequeno, pouco divulgado, quase artesanal, embora leve o selo da Edições MAC, editora do Museu de Arte Contemporânea Raimundo de Oliveira, de Feira de Santana, e distribua sua força entre versos com as iustrações de Devarnier Hembradoom. Nunca nos vimos pessoalmente, nunca nos falamos, nunca me deu livros ou CDs com poemas gravados, não o conheço, mas são tantos os pontos de identificação entre nós que o sinto bem próximo. Talvez ali, onde Lou Reed canta Walk On The Wild Side, ou onde Jim Morrison faz sua dança da chuva (tempestade, temporal, ritual) em Light My Fire. _________ Kátia Borges é escritora e jornalista. Publicou três livros de poemas: De volta à caixa de abelhas (2002), Uma balada para Janis (2009) e Ticket Zen (2010). |
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2 comentários:
Tudo beleza, texto, canção, imagem e vídeo. Abraço, Magalhães.
Buenas, muito bom mesmo, o livro embora fale por si, mas reforço, tem uma poesia muito foda! Abraço.
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